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sexta-feira, 10 de abril de 2020

Camila Lima, analista de desempenho da Seleção Feminina Equatoriana: "Me sinto na obrigação de evoluir constantemente"


Camila Lima é analista de desempenho da Seleção Feminina Equatoriana (Foto: Arquivo Pessoal)

Ainda é difícil encontrar mulheres que trabalham nas comissões técnicas das equipes de futebol. Mas é fato que a participação delas tem aumentado consideravelmente, seja como treinadora, dirigente e na análise de desempenho.

Exemplo disso é Camila Lima. Natural de São Paulo, mas residente em Pernambuco na maior parte de sua vida, ela é formada em Educação Física pela Universidade de Pernambuco, integrante do projeto Footure em Análise Tática, onde escreveu vários artigos sobre a Copa do Mundo Feminina, tendo como tema a Seleção Brasileira, eliminada para a França, e também dissertou sobre a Pia Sundhage, atual técnica do Brasil.

Aspirante a técnica de futebol, Camila trabalha com Emily Lima, ex-Santos e Seleção Brasileira, na Seleção Feminina do Equador. Em entrevista ao blog, revelou os primeiros passos na análise de desempenho, comentou sobre as transformações que passara e também falou sobre o clima no Equador, em meio à pandemia do coronavírus.

Como nasceu essa vontade de ser analista de desempenho?
Minha história começa como quase todas as histórias comuns no futebol: querendo ser jogadora. Eu sou paulista, mas vivi muito tempo em Pernambuco, isso não ajudou muito. Eu tentei, mas não deu. Entre estudar e jogar futebol, escolhi estudar, muito pela pressão da minha avó. Na faculdade de Educação Física, conheci o professor Fabiano Chokito, um dos melhores profissionais do Estado. Passei a tê-lo como referência, pois os conceitos táticos que ele passava eram muito bons. Um dos melhores treinadores de futsal. Com isso, virei treinadora da equipe feminina de futsal na universidade. Foi assim. Trabalhando bastante, aprendendo, errando. Estudei, além da parte tática,  a questão da neurociência, os pormenores do futebol. Quando saí da faculdade, passei a analisar as equipes pela televisão mesmo. Era papel e caneta. Anotava tudo e guardava as análises pra mim, raramente publicava no Twitter algumas coisas. Depois, acompanhei o Sport no Campeonato Brasileiro Feminino da Série A1. E tudo era com material simples: meu celular, papel, caneta. Não que o lado treinadora esteja presente, é algo que ainda mexe comigo, mas a análise de desempenho me encantou de vez. E os meus textos, minhas análises me levaram a pessoas incríveis, como a Emily Lima, a Rosana, e foi assim que eu cheguei ao Equador.

Quem são suas maiores referências nessa área de atuação?

Tenho muitas referencias que se misturam com analistas e treinadores: para citar dois analistas, cito Breno Lucena, que trabalha no time masculino do Náutico, e o Otávio Augusto, que trabalhou no Santa Cruz, e hoje é técnico do Sub-15 do Náutico. São profissionais capacitados, inteligentes. Para mim, o Eduardo Cecconi é um dos melhores do Brasil, tem uma visão muito diferenciada. Também gosto de trocar ideia com o Gabriel Eloi, do Vitória. A gente tem um grupo no WhatsApp, onde a gente conversa, troca ideias, ver o que eles discutem. A própria Michele Kanitz, que foi treinadora da Ferroviária, depois assumiu o cargo de analista de desempenho e trabalhou na equipe masculina do Corinthians, com o Osmar Loss. São muitas pessoas em quem me inspiro e, provavelmente, deixei de citar alguns nomes (risos).

Camila Lima ao lado da técnica Emily Lima, em um treino da Seleção Equatoriana (Foto: Arquivo Pessoal)
Qual o papel que o analista de desempenho exerce e qual a importância dos dados para os demais membros da comissão técnica?

O papel do analista de desempenho é auxiliar com análises, parâmetros dos treinos, o modelo de jogo, analisar as adversárias, para poder entregar o máximo de dados para a comissão técnica. Aqui falo como é o trabalho com a Emily Lima. Eu auxilio a treinadora a ter cada vez mais dados, sejam eles quantitativos, sejam qualitativos, tanto dos treinos quanto dos jogos. A gente analisa os scouts de cada atleta e contamos com a ajuda dos clubes onde elas jogam. Então, assistimos aos jogos e vamos analisando aquelas que possivelmente podem ser convocadas e que se adequem ao nosso estilo de jogo. Parte muita dessa coisa. Dentro da minha função, como a gente pegou uma seleção que vem se estruturando, partimos da premissa de montarmos um banco de dados para facilitar o nosso trabalho. Então, temos quantas atletas foram chamadas, avaliadas, em quais clubes elas jogam. O analista não é treinador. Sigo na premissa até onde posso ir. Se não for relevante pra ela (Emily), não é relevante pra mim. Coleto todos os dados possíveis e ajudo a diminuir a imprevisibilidade do jogo. Sabemos que o futebol é imprevisível, mas se consigo passar aquilo que enxergo, podemos ter uma pequena noção do que pode ocorrer.

Como é a relação entre você e as atletas?

Minha relação é extremamente profissional. A gente teve uma convocação atrás da outra nos últimos meses. Então, o que temos passado são os vídeos, alguns dados que sejam interessantes para as atletas. Tem sido boa esta troca de ideias. É tudo muito novo para elas. Sou a primeira analista de desempenho da Seleção Feminina. Logo, a gente tenta adequar as maneiras de trabalho. Notamos uma mudança de comportamento, porque elas começam a nos buscar para assistir aos vídeos, ver um lance de gol, os scouts das partidas. É uma cultura nova, tenho feito minhas avaliações para otimizar o meu método de passar as informações. Às vezes, as meninas podem não entender as palavras, mas sim as imagens. Vamos adaptando às culturas e vejo que elas estão se acostumando com as nomenclaturas. Por enquanto, tem dado certo.


Trabalho da analista de desempenho (Foto: Arquivo Pessoal)
Em sua opinião, por que há ainda um espanto ao deparar com mulheres no futebol?

Minha opinião passa pela estrutura social. A gente vive numa sociedade bem machista, sexista, que tem a mulher como objeto. Então, a gente vem de uma cultura que coloca a mulher numa posição de "fragilidade". O futebol reflete na sociedade. As mulheres foram proibidas de jogar futebol por muitos anos. Mulher de cabelo curto não jogava. Vejo com espanto. Passo por isso ainda. De vez em quando expresso minhas opiniões no Twitter e vejo as reações. Porém, tive ajuda de muitos caras que começaram a desconstruir esse processo e abriram a cabeça de outros homens. As coisas têm mudado aos poucos. a partir de uma desconstrução social. Um levantamento do GloboEsporte.com mostrava como eram as comissões técnicas das equipes femininas no Brasil, e o número mostrava que 30% dos integrantes das comissões são do sexo feminino (leia a matéria). Ou seja, a modalidade feminina que deveria ser dominada por mulheres, é dominada por homens. Mas acredito que estamos mudando essa imagem. As mulheres têm participado mais.

Como você recebeu o convite para fazer parte da comissão técnica da Seleção Feminina do Equador?
É uma história inusitada. O convite fez parte da construção desde 2019. A Rosana Augusto, que hoje é jogadora do Palmeiras, estava no Santos à época, e conhecia o meu trabalho pela internet. Com isso, a gente começou a trocar ideias e perguntei se seria possível uma troca de ideias com a Emily Lima, um estágio, qualquer coisa. Ela fez essa ponte. Fui para Santos, saí de Recife, e fui estagiária da Emily por 15 dias. Participei de todo o processo. Ela me deu muita abertura para entender o objetivo dos treinos, a questão dos jogos. O meu Dossie Vadão, que escrevi para o Footure, teve uma participação fundamental da Emily, porque analisei a parte tática da Andressa Alves, que estava no Barcelona, e fui conversando com a treinadora para entender a sua participação no esquema e modelo de jogo. Escrevemos juntos um capítulo no E-book sobre os números dela no Santos. Falei sobre a parte tática da Emily para ela mesma (risos). Acredito que isso foi fundamental para que Emily me escolhesse para estar ao lado dela.


E quando fui demitida do banco, em Recife, mandei mensagem para ela, dizendo que havia sido demitida e que estava à disposição para ajudá-la em qualquer coisa. Dias depois, me ligou, fazendo esta proposta de estar como analista de desempenho no Equador. É um desafio a cada dia. Todo dia eu sou grato a ela. Me sinto na obrigação de evoluir constantemente.

Qual foi a maior dificuldade nessa transferência de um país para outro?
A maior dificuldade, com certeza, foi a língua. Porque sempre estudei muito inglês, e tenho dificuldade com o espanhol, desde a escola. Vim para cá em novembro, então não tive muito tempo para assimilar as diferenças. Nunca tinha feito uma viagem para fora do Brasil. Mas fui começar a aprender o espanhol, os equatorianos da comissão me ajudam muito, aprendemos a conjugar os verbos. Quando não dava certo, partíamos para a mímica mesmo. E a outra dificuldade é a questão de estar longe dos meus familiares. Nunca tinha saído de casa, sempre fui muito apegada à minha família. Fiz parte de toda recuperação da minha avó, que tinha quebrado o fêmur. Isso aumentou ainda mais a nossa relação, porque eu ajudava na fisioterapia, ela havia perdido a confiança de andar em casa, de andar na rua. Estar longe deles é complicado. 

Estamos passando por uma crise sanitária e social muito forte, que é a pandemia do COVID-19. Como está a situação no Equador? Quais medidas foram adotadas pela Federação Equatoriana?
Equador é um país menor que o Brasil, em termos de território e população. Mas tem tido muitos casos de coronavírus. É um país que sofre com a desigualdade social, assim como o Brasil. É muito calor, a população não tem ficado isolada, e os casos aumentam drasticamente, a ponto de terem os corpos espalhados nas ruas, nos hospitais, de terem urubus em cima dos hospitais, por causa do mau-cheiro. O foco do coronavírus é Guayaquil. Estou em Quito e aqui tem toque de recolher a partir das 14h até às 5h do dia seguinte. Não vejo ninguém na rua. Tem multa em dinheiro para quem descumpre a regra, o governo tem tomado as medidas. A Federação tomou 20 medidas, e as principais são de não ter convocação agora, diminuir os custos da viagem, montar um plano para o calendário das competições. A casa da Seleção, onde eu moro, tem servido como leito do hospital. Vou completar um mês que estou aqui, desde o retorno da Argentina, onde disputamos o Sul-Americano Sub-20. Então, a Federação tem sido bem flexível nas decisões para arrumar as coisas pouco a pouco.

Em meio à pandemia, queria que você falasse, se possível, a respeito da transformação do seu trabalho e da sua rotina.

Meu trabalho é muito dependente dos clubes, então tem clubes, como o Independiente Del Valle, que tem postado vídeos das meninas treinando em suas casas. A LDU também tem feito isso. Assim, eu faço esse monitoramento pelas redes sociais. Toda sexta-feira a gente faz uma reunião com membros da comissão técnica para discutirmos sobre a preparação física, estratégias, processo de avaliação do Sub-20. Converso com as atletas para saber se elas estão mantendo a rotina, se estão em treinando. Porque se elas estiverem destreinadas quando voltarmos às atividades, o método de trabalho terá que ser diferente. Confesso que é difícil manter a minha cabeça focada. Não tenho visto TV, porque o excesso de notícias ruins pode me atrapalhar. Só saio para fazer as refeições. Então, a rotina passa por fazer essas coisas, seja monitorando, estudando, assistindo aos jogos que realizamos. Eu ainda faço um curso pela Internet, mas o serviço está carregado, aí enfrentamos dificuldades para acessá-la. Provavelmente, devemos ter novas medidas na próxima semana, por parte do Governo e da Federação, e isso resultará numa nova reunião para que possamos alinhar outros detalhes.

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